Assim
também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta. (Tiago 2, 17)
Igreja
é povo que se organiza, gente oprimida buscando
a libertação em Jesus Cristo a
ressurreição...
1.
Cristandade e Modernidade
Atualmente as pessoas
estranham e até duvidam do diálogo entre Fé e Política. Muitas vezes esse fato
é agravado pela atual crise ética na política. Mas para compreendermos a
construção desse pensamento é necessário que voltemos no tempo. Na Idade Média
(Séc. V-XV), período que também chamamos de Cristandade, o tempo pertence a
Deus, a fé é mais importante que a razão, Deus está no centro das atenções
(Teocentrismo). E tudo que estivesse contrário a essa lógica seria passível de
condenação por heresia. Nesse contexto a Igreja Católica, vai dominar toda a
Europa e ditar as regras do Estado, a Igreja e o Estado é um só. No topo da
pirâmide dessa sociedade estava o poder político do clero, representado pelo
Papa e abaixo estava o poder político da nobreza, representado pelo Rei. O rei
detinha um poder concedido e controlado pela Igreja. O seja, o Estado do
Feudalismo era submisso ao poder da Igreja. O catolicismo vivia esta profunda
crise teológica, mergulhado em corrupção e atrocidades que contradiziam o evangelho
de Cristo. A Igreja Católica fazia política para a manutenção de um status de
poder, luxo e glória. No entanto surgem os primeiros raios de sustentação da
modernidade, a Reforma Protestante, que vai fazer duras críticas e uma ferrenha
oposição àquela realidade. A base teórica moderna inicia então o seu processo
de construção. Surge então a Modernidade (Séc. XV-XVIII), período que também
chamamos de Renascimento, o tempo pertence ao homem, ao contrário do que muitos
pensam a razão e a fé são importantes, o homem está no centro das atenções (Antropocentrismo).
Os homens despertam para o seu dinamismo e protagonismo, buscando sua
libertação da tutela da Igreja. É o que hoje gritamos nas manifestações: “nada
sobre nós, sem nós”. Estes novos pensamentos e esse novo cenário irá favorecer
a ascensão de um novo sistema político, o Capitalismo e a ascensão de uma nova
classe, a burguesia. A burguesia vai questionar a intervenção da Igreja nas
decisões do Estado e o poder absoluto da monarquia. Essa tensão vai culminar na
Revolução Francesa (1789-1799) onde o rei Luís XVI foi deposto e assassinado, a
monarquia foi extinta e foi instaurada uma república democrática e secular sob
o lema de liberdade, igualdade e fraternidade. Daí surge o rompimento entre a Igreja
e o Estado. Esta é a herança que “separa” a Fé-Religião da Política. Mais tarde
esta relação será retomada dentro de novas perspectivas.
2.
São Francisco e a Militância
Francisco de Assis viveu no
período da Cristandade, sob o domínio do Papa Inocêncio III (1198-1216).
Vivia-se uma profunda crise teológica na Igreja Católica, sob a égide do
“dominium mundi”, domínio do mundo, toda a Europa até a Rússia vivia submissa
às decisões e regras do Papa. A igreja vivia como um império de luxo e glória
contradizendo todos os ensinamentos de Jesus. Francisco foi um revolucionário,
subversivo e transgressor desta ordem. Escolhi três momentos de sua vida onde
podemos analisar sua militância e vocação de Fé e Política. O filho de Pedro
Bernardone nasceu com os privilégios de um filho da nobreza, além do título, a
fama e a fortuna. Esta era a tradição hereditária da época, onde a ambição pelo
ter era superior ao ser. Francisco vai subverter essa ordem
quando diante dos seus pais e do bispo de Assis, Dom Guido II (1204-1228),
renuncia a toda sua herança e fica despido de suas roupas diante de todos. Surge
então o jovenzinho transgressor que desafia as principais instituições de sua
época, a família e a Igreja. Desafia a autoridade política da Igreja. Francisco
poderia ter sido preso como louco e infame. Mas sua “loucura” será revelada em
outro momento. O jovem de Assis fez a opção radical e preferencial pela pobreza
e pelos pobres. Já deserdado de seus direitos e expulso de casa, se dirige para
fora dos muros de sua cidade e vai servir com misericórdia e diligência aos
pobres e leprosos no leprosário. É o Francisco de Assis que vai para a
“quebrada da periferia” viver com os que vivem a margem do sistema. Ele beijou
o leproso, onde o Cristo se revelou. Quem são os marginalizados de hoje?
Precisamos beijar e assumir a luta e a causa de cada trabalhador/a, a causa das
mulheres, a causa dos negros/as, a causa das/os LGBTT’s, e de todos/as pobres
que são oprimidos por esse sistema que exclui, degrada e mata. O pobrezinho de
Assis também sofreu preconceito com o seu grupo quando se dirigiu a Roma para a
aprovação da regra. O Papa não queria o receber, então passaram dias de resistência
até serem ouvidos. Inocêncio III foi surpreendido com uma proposta de vida
baseada no despojamento dos bens materiais e na caridade. Ele duvidou e
subestimou as capacidades de Francisco. O pobrezinho astuto e inteligente,
utiliza dos seus argumentos para arte do convencimento, e conquista a revolução
com a aprovação oficial de sua ordem. Podemos concordar que o homem de Deus vivia o lema “ousadia e
alegria”, mais uma vez ele desafia os poderes políticos da Igreja. Ousadia foi
quando desafiou o martírio nas terras do Egito e no encontro com o sultão.
Vemos nesse episódio a revelação de sua vocação política com um diálogo inter-religioso
de paz. Acredito que Francisco daria um excelente ministro das relações
exteriores e que ele tem muito a ensinar a ONU (Organização das Nações Unidas).
O pobrezinho de Assis nos mostra a Política como o caminho para a práxis
(teoria na prática) da vivência de uma Fé pautada na misericórdia, na justiça e
na paz.
3.
O Concílio Vaticano II.
A modernidade trouxe consigo
grandes e valorosas contribuições para a construção da política atual: os
ideais de igualdade, liberdade, democracia, direitos, cidadania, etc. Durante
muito tempo o alto clero não se conformou em perder o seu posto de privilégios,
e muitos papas se pronunciaram contra os valores da modernidade. Mas junto veio
à origem de todas as desigualdades econômicas e sociais: o capitalismo liberal.
Os trabalhadores viviam em condições absurdas de exploração e insalubridade.
Antes mesmo do Concílio Vaticano II, o Papa Leão XIII, alguns presbíteros e
notadamente os leigos vão se posicionar perante a realidade, construindo uma
ponte para a ação política dos cristãos e para o diálogo com a modernidade.
Esta tomada de consciência e atitude se dará, sobretudo no final do século XIX
quando o Papa Leão XIII escreve a encíclica Rerum
Novarum sobre a condição dos operários, uma grande contribuição para a
Doutrina Social da Igreja. E no mesmo período os leigos vivenciam o movimento
intitulado Democracia Cristã aprovado
pelo então Papa Leão XIII, inclusive atuando em partidos que assumem essa
ideologia. E mais tarde os leigos irão se organizar na Ação Católica, fundada em 1929 pelo Papa Pio XI. Vemos aqui que a
ação dos leigos ainda está submissa e dependente da tutela e aprovação do Papa.
E surge então o Concílio Vaticano II,
convocado pelo Papa João XXIII em 1962 e concluído pelo Papa Paulo VI em 1965. Este
Concílio tem uma importância essencial no estabelecimento de um novo diálogo
entre Fé e Política, pois ele dialoga com a modernidade, constata os seus
valores, faz suas críticas, e chama toda a Igreja a se inserir na construção da
história. É construído um profundo diálogo com o humano e apontada a opção
sociopolítica e preferencial pelos pobres. Encarrego-me aqui de transmitir
algumas pistas que fundamentam o agir cristão no mundo e na política a partir
do Concílio Ecumênico Vaticano II: 1) O
humano como centro do agir. Esta, sim, é a busca do agir político: que o
ser humano seja em tudo, valorizado. O ser humano como centro do agir político
do cristão e ao mesmo tempo o seu ponto de chegada. (GS 12). 2) Buscar a sabedoria, a consciência e a
liberdade. Contrário ao ter, é
necessária a sabedoria do ser, da
relação com o outro, para que a construção do futuro atenda a todos e todas.
Buscar no fundo da nossa consciência, laço sutil com o criador, que nos leva à
responsabilidade para com o outro e para com o mundo criado. Usar de sua
liberdade para construir o mundo justo, fraterno e solidário em função do
outro, principalmente dos pequenos e pobres. (Reino de Deus). 3) Mundo da economia. Dizer não ao acúmulo
de riquezas nas mãos dos que já têm, em detrimento dos pobres. Buscar
radicalmente, a igualdade e a valorização dos pobres. A economia tem que está a
serviço do humano. 4) Propriedade. A
propriedade é de índole social, fundada na lei do destino comum dos bens. Dado
que uns poucos têm em demasia, a propriedade tem que estar a serviço dos
demais, pois ao mesmo tempo, os pobres não têm o mínimo que sua dignidade
humana exige. 5) Mundo do Trabalho. O
agir cristão na política deve se promover na proteção do trabalho e dos seus
direitos. 6) Participação. Os
cristãos e cristãs que assumem o processo político devem agir contra todos os
impedimentos – filosóficos, econômicos e religiosos – que obstruem a livre
participação. 7) O Estado. O Estado
existe em vista do bem comum, que consiste no “ conjunto das condições de vida
social que permitem ao indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e
facilmente a própria perfeição” (GS 74, citando Mater et Magistra). 8) Viver
no mundo urbano. No mundo urbano predomina a necessidade de fazer política não
só dos que “sabem”, mas de todos que acreditam poder interferir no mundo que
lhes pertence.
4.
Do Pós-Concílio à Atualidade.
A mensagem do Concílio
Vaticano II, irá se encaixar perfeitamente ao contexto sociopolítico da América
Latina. Nas décadas de 60 e 70, estava com todo o fervor os ideais socialistas a
partir de Cuba. Os Estados Unidos temia o crescimento desses ideais; então
iniciou um processo de instauração de ditaduras militares, inclusive no Brasil.
Um continente historicamente oprimido pela colonização e o imperialismo
europeu, agora sofria com a tortura, a repressão e a censura de governos
autoritários apoiados pelo governo estadunidense. Os bispos latino-americanos
se uniram e construíram novas possibilidades para a luta e a resistência a
partir das Conferências Episcopais de
Medellín e Puebla. “A fé cristã não despreza a atividade política; pelo
contrário, a valoriza e a tem em alta estima. [a mensagem de Cristo] É uma
mensagem que liberta porque salva da escravidão do pecado, raiz e fonte de toda
opressão, injustiça e a discriminação.” (Puebla 514 e 517). Estas conferências
impulsionaram a construção de uma práxis sociopolítica, evangelizadora e
transformadora da realidade; A partir de movimentos como a Ação Católica Especializada (JUC – Juventude Universitária Católica,
JOC – Juventude Operária Católica, JAC – Juventude Agrária Católica...), a Teologia da Libertação que vê Jesus em
sua prática como o Filho de Deus que faz a opção pelos pobres, e busca a sua
libertação das injustas condições econômicas, políticas ou sociais. E a prática
dessa teologia se dará até hoje principalmente através das CEB’s – Comunidades Eclesiais
de Base. Nesse mesmo contexto em junho de 1989 surge o Movimento Fé & Política que até hoje persiste aberto a todas as
pessoas que consideram a política uma dimensão fundamental da vivência de sua
fé, e a fé o horizonte de sua utopia política.
E é um movimento comprometido com o exercício da cidadania ativa e a
construção de uma sociedade socialista, democrática, plural e planetária. Esses
movimentos revelam o protagonismo dos leigos, mas muitos bispos irão apoiar
esses movimentos, como Dom Helder Câmara e Dom Pedro Casaldáliga. E a partir
desses movimentos surgiram as Pastorais Sociais como a Pastoral Operária e as Pastorais
de Juventude (PJ, PJMP, PJR e PJE); Partidos
Políticos e Movimentos Sociais. A
Juventude Franciscana do Brasil também
nos convida a assumir essa causa a partir da Subsecretaria de DHJUPIC (Direitos
Humanos, Justiça, Paz e Integridade da Criação). Parafraseando o Papa
Francisco, concluindo “digamos
juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum
trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá” –
“Jovens, sejam revolucionários!”.
Lucas Lins
Secretário de Formação e DHJUPIC – Fraternidade Nova
Metrópole
Membro da Articulação do Movimento Fé & Política – Ceará
Licenciando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do
Ceará
Referências
1.
SIGNORELLI, C. F. O Vaticano II e a Política / Carlos Signorelli. – São Paulo:
Paulus, 2016. – Coleção Marco conciliar.
2.
Conclusões da Conferência de Puebla – Texto Oficial. – Edições Paulinas, São
Paulo, 1986.
3.
Fontes Franciscanas / [coordenação geral Dorvalino Francisco Fassini; edição
João Mamede Filho]. – Santo André, SP; Editora “O Mensageiro de Santo Antônio”,
2004.
4.
Fé e política: fundamentos / Pedro A. Ribeiro de Oliveira, (Organizador). –
Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004.
5.
BOFF, Leonardo. Francisco de Assis e Francisco de Roma. Site
LeonardoBOFF.com.
Disponível
em: https://leonardoboff.wordpress.com/2013/03/29/francisco-de-assis-e-francisco-de-roma/